A
derradeira adoção – Celso Gutfreind*
A literatura no
RS confunde-se com adoção. Adote um
escritor é o nome de um dos seus projetos. As escolas públicas escolhem um
autor para trabalhar com os alunos. Primeiro, trazem seus livros, contam
histórias, promovem a leitura. Depois,
acolhem o autor a quem literalmente adotam.
O projeto apresenta outros braços em suas adoções. A Secretaria
Municipal da Educação adota um escritor para trabalhar diretamente com os
servidores. Na última eleição, estive entre os mais votados, junto com feras
das letras como Airton Ortiz, Cláudio Levitan, Paula Mastroberti, Celso Sisto. Desta vez,
acabei sendo o escolhido.
As expressões humanas se tornam metáforas da vida. Assim
é a arte mais diretamente, mas também o futebol, a gastronomia, a arquitetura.
E a adoção envolvida no projeto literário. Afinal, na vida mesma, em nossas
filiações, somos todos adotados. A biologia pode ser outra expressão igualmente
fascinante, envolta a mistérios como o esporte e o teatro. Porém ela nada
garante.
Toda expressão é um milagre. O nascimento, também.
Superar
os outros milhões de espermatozoides, encontrar o óvulo no momento exato,
superar as intempéries da gestação, do parto, das primeiras horas, de todas as
seguintes. Mas esta façanha será interrompida se não houver amor. O amor, sim,
garante. E o amor não é biológico nem físico nem químico, porque é tudo isto
mais aquilo.
Não sabemos do que ele é feito, mas sentimos que, sem
ele, não vingamos. Só vivemos se formos adotados, e toda a arte e toda a
expressão e todo o tratamento psicológico gira em torno do amor no sentido de
encontrar uma forma de dizer aonde fomos e não fomos adotados.
Reconhecer a sua presença e amparar-nos em corrimões
erguidos por ele, mas desconhecidos ainda. Perceber onde esteve ausente para
encontrarmos a possibilidade de lidar com os vazios e preenchê-los até que ali
volte – ou surja? – amor. E a adoção.
Desta vez, surgiu: fui adotado. E me relanço na vida
muito além da biologia. E aquém da morte, talvez a derradeira adoção.
* O escritor e psiquiatra apresentou este texto no II Adote da SMED Centralizada, ocorrido no dia 26 de agosto de 2013, no auditório da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre.
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