terça-feira, 27 de agosto de 2013

A derradeira adoção – Celso Gutfreind



A derradeira adoção – Celso Gutfreind*

            A literatura no RS confunde-se com adoção. Adote um escritor é o nome de um dos seus projetos. As escolas públicas escolhem um autor para trabalhar com os alunos. Primeiro, trazem seus livros, contam histórias, promovem  a leitura. Depois, acolhem o autor a quem literalmente adotam.
            O projeto apresenta outros braços em suas adoções. A Secretaria Municipal da Educação adota um escritor para trabalhar diretamente com os servidores. Na última eleição, estive entre os mais votados, junto com feras das letras como Airton Ortiz, Cláudio Levitan, Paula Mastroberti, Celso Sisto. Desta vez, acabei sendo o escolhido.
            As expressões humanas se tornam metáforas da vida. Assim é a arte mais diretamente, mas também o futebol, a gastronomia, a arquitetura. E a adoção envolvida no projeto literário. Afinal, na vida mesma, em nossas filiações, somos todos adotados. A biologia pode ser outra expressão igualmente fascinante, envolta a mistérios como o esporte e o teatro. Porém ela nada garante.
            Toda expressão é um milagre. O nascimento, também.
Superar os outros milhões de espermatozoides, encontrar o óvulo no momento exato, superar as intempéries da gestação, do parto, das primeiras horas, de todas as seguintes. Mas esta façanha será interrompida se não houver amor. O amor, sim, garante. E o amor não é biológico nem físico nem químico, porque é tudo isto mais aquilo.
            Não sabemos do que ele é feito, mas sentimos que, sem ele, não vingamos. Só vivemos se formos adotados, e toda a arte e toda a expressão e todo o tratamento psicológico gira em torno do amor no sentido de encontrar uma forma de dizer aonde fomos e não fomos adotados.
            Reconhecer a sua presença e amparar-nos em corrimões erguidos por ele, mas desconhecidos ainda. Perceber onde esteve ausente para encontrarmos a possibilidade de lidar com os vazios e preenchê-los até que ali volte – ou surja? – amor. E a adoção.
            Desta vez, surgiu: fui adotado. E me relanço na vida muito além da biologia. E aquém da morte, talvez a derradeira adoção.

 * O escritor e psiquiatra apresentou este texto no II Adote da SMED Centralizada, ocorrido no dia 26 de agosto de 2013, no auditório da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre.


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